domingo, 23 de setembro de 2012

Pedrinho caça fantasmas

Pedrinho caça fantasmas
A catástrofe nacional é a de que, como resultado dos mais de 300 anos de escravidão, preconceitos desse nível também estão na família, na escola, no trabalho, nos grupos sociais, na mídia, na publicidade, na televisão, na indústria de massa como um todo


- Por: Arte: Lucas Araújo
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Notícia publicada na edição de 23/09/2012 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 004 do caderno E - o conteúdo da edição impressa na internet é atualizado diariamente após as 12h.


Carlos Araújo
carlos.araujo@jcruzeiro.com.br

E Monteiro Lobato, um dos autores mais respeitados do Brasil, virou assunto de debate no Supremo Tribunal Federal (STF). "Caçadas de Pedrinho", um de seus livros, recebeu parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) com recomendação para a retirada da obra do Programa Nacional Biblioteca na Escola. A acusação é de racismo porque a obra contém trechos como o que compara uma personagem, Tia Nastácia, a uma "macaca de carvão". Estopim para uma polêmica que escancara a encruzilhada em que a sociedade brasileira se mete na hora de exorcizar os seus mais assustadores fantasmas, os seus piores pesadelos, as suas mais dolorosas catástrofes.

O debate é uma prova de que, por mais que o tempo passe, nenhum país fica impune diante da memória de mais de 300 anos de escravidão negra com o respaldo de um estado colonizador e imperial. E um estado que está na base da formação e desenvolvimento do Brasil como nação.

O que está em jogo nesse debate são vários aspectos e por isso a discussão é complexa, interminável e de difícil conclusão. Um dos problemas é o da censura, outro fantasma que se manifesta ora diretamente, ora por meio de alternativas como medidas judiciais para barrar a publicação de livros ou a exibição de filmes. Outro dilema é o que fazer com a memória dos grandes crimes nacionais. O Brasil tem tradição de esconder os seus horrores ou ou mascará-los com jardins. O jurista Rui Barbosa, por exemplo, conhecido por sua inteligência, mandou queimar os arquivos da escravidão no fim do século 19 quando ocupava um alto cargo no governo da nascente República. O Pavilhão 9 da antiga Penitenciária do Carandiru, onde aconteceu o massacre de 111 presos em 1992, simplesmente não existe mais e no local foi construído um parque. Sem contar as distorções que mostram personagens históricos como heróis e cujas biografias não têm sintonia com essas imagens de puro marketing.

Não há como apagar ou negar o passado. A memória de um pesadelo deixa provas, rastros, sinais inconfundíveis. E a linguagem é um dos campos em que estes signos se manifestam. Querer banir manchas do passado pela extinção de suas pegadas é um equívoco medonho. O melhor é encarar as dores e extrair delas a aprendizagem necessária para suportar a vida e continuar a existir sem se dobrar com o peso da consciência.

Retirar "Caçadas de Pedrinho" das bibliotecas não vai resolver o problema do preconceito racial no Brasil. Até porque, a questão não se resume a um livro. A situação está presente na sociedade brasileira, independentemente da obra de um escritor importante como Monteiro Lobato.

As tentativas de equilibrar as relações sociais em torno do preconceito racial estão reguladas pela legislação, que enquadra o racismo como crime. O problema é que a lei, ao mesmo tempo em que contém impulsos e manifestações racistas pelas punições que prevê, não é suficiente para mudar as consciências. E a preocupação que move os que se posicionam contra o livro de Monteiro Lobato é justamente com a formação de consciências. Crianças tomam contato com uma obra que compara uma personagem a "macaca de carvão" e isso pode estimular o preconceito racial.

A catástrofe nacional é a de que, como resultado dos mais de 300 anos de escravidão, preconceitos desse nível também estão na família, na escola, no trabalho, nos grupos sociais, na mídia, na publicidade, na televisão, na indústria de massa como um todo. Piadas de conteúdo racista não são raras em reuniões de grupos de amigos. O assunto é tão grave que o governo da presidente Dilma Rousseff criou a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Também não é raro pais terem que ir à direção de escolas discutir queixas de filhos que chegaram em casa dizendo que foram chamados de "macacos" por colegas de classe. Eu mesmo, há 10 anos, tive que falar com a diretora de uma escola pedindo providências porque o meu filho era xingado dessa forma por colegas. O que espanta é que um assunto desse tamanho somente entra na pauta das discussões por ocasião de datas como o 13 de Maio (Lei Áurea) e o 20 de Novembro (Dia Nacional da Consciência Negra). Ou quando ocorre um acontecimento inusitado como este da discussão de uma obra literária no STF.

Diante de tudo isso, barrar "Caçadas de Pedrinho" do Programa Nacional Biblioteca na Escola é, acima de tudo, um ato de censura. Isto não quer dizer, no entanto, que as justificativas do CNE sejam desprovidas de sentido. São válidas pela preocupação, mas perdem a força quando utilizadas para censurar uma obra literária.

Retirar a obra do programa de bibliotecas públicas seria o mesmo que repetir as ações da censura durante a ditadura militar. Naquela época a censura proibiu o livro de contos "Feliz Ano Novo", de Rubem Fonseca, com o argumento de que as histórias eram violentas demais. E o que era o Brasil, tanto naquela época como hoje? Pacífico? Para uma resposta, basta citar o domínio do tráfico, de facções criminosas, da corrupção e de índices de homicídio na sociedade, um conjunto de problemas que coloca o Brasil em situação equivalente a países em guerra.

Toda censura é, por natureza, criminosa. Se "Caçadas de Pedrinho" for retirado das bibliotecas, há o perigo de investirem depois contra os romances "O Mulato", de Aluísio de Azevedo, e "Escrava Isaura", de Bernardo Guimarães, que também abordam a questão do preconceito racial.

Sejamos críticos, mas não sejamos hipócritas.


http://www.cruzeirodosul.inf.br/acessarmateria.jsf?id=421276

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