segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Ensino obrigatório de cultura afro se ressente de despreparo de professores

Ensino obrigatório de cultura afro se ressente de despreparo de professores

SAULO PEREIRA GUIMARÃES





Sem monitoramento efetivo, qualidade do que é ensinado nas escolas brasileiras pode ser deficiente, afirmam pesquisadores.   
(Foto: Raphael Dias/ Riotur)
Mais de seis mil quilômetros separam o Brasil do continente africano. A enorme distância física foi simbolicamente reduzida por séculos de forte ligação cultural entre os dois lados do Atlântico. Apesar disso, os brasileiros seguem sabendo pouco sobre a história africana. Para reduzir esse desconhecimento, a lei 10.639, que completou 13 anos no último dia 9/01, tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no Brasil.
A iniciativa é considerada uma conquista de movimentos organizados da sociedade civil, mas sua implementação está cercada de mistério. Um dos principais obstáculos está na formação de quem deve passar esse conhecimento adiante. "Muitos professores não conseguem aplicar a lei simplesmente porque não estão preparados", lembra a socióloga e ativista Flávia Pinto, assessora da Coordenadoria de Direitos Humanos na Prefeitura do Rio. Para tentar atenuar o problema, o Governo do Estado montou comitês étnico-raciais. Eles organizam seminários anuais nos quais educadores apresentam trabalhos de sucesso na área. Estes eventos também são usados para formação de novos professores do tema.
De acordo com o Governo do Estado, todas as 1.200 escolas da rede estadual fluminense têm aulas sobre o tema entre o sexto ano do ensino fundamental e o terceiro do ensino médio. Entretanto, há oito anos está parado na Justiça umpedido de perícia do currículo da disciplina lecionada em colégios particulares, da Prefeitura e do Estado feito pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) e outras entidades. O motivo é que, na prática, é impossível saber o que está sendo de fato ensinado nas escolas. Segundo o advogado Humberto Adami Junior, presidente do Iara, foi o Estado que recorreu nos tribunais para não atender à solicitação, emperrando o processo. "Com certeza há deficiências no ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no Rio e em todo o Brasil", afirma Adami.
Como não há clareza em relação ao que se ensina na disciplina e o efeito da lei 10.639 sobre o ensino de maneira geral, pesquisadores têm se voltado para a questão. Um deles é a socióloga Patrícia Guimarães, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Guimarães está terminando uma tese de mestrado que vai abordar a aplicação da lei num contexto específico: uma escola carioca particular com alunos de classe de classe média alta. "Eu queria entender como esse ensino acontece num ambiente majoritariamente branco", contou a socióloga em entrevista ao Vozerio.
Para isso, Guimarães acompanhou as aulas ligadas ao tema e o cotidiano do colégio entre os meses de fevereiro e outubro de 2015. A pesquisadora também entrevistou 10 professores para entender como eles lidam com o assunto. Destes, apenas dois se identificaram como negros. Segundo a pesquisadora, a história e cultura afro-brasileira e africana são abordadas por várias matérias no colégio analisado. Numa aula sobre industrialização na África, por exemplo, um professor de geografia discutiu com os alunos os problemas históricos envolvidos neste processo.
"Aulas de macumba" e preconceito religioso
Segundo a socióloga, quase todos os educadores da escola ligados às ciências humanas tomaram iniciativas desse tipo em algum momento do período analisado. Também houve aulas envolvendo o assunto em áreas menos óbvias, como a matemática. Na maioria das vezes, observou Guimarães, os alunos se mostraram abertos a discutir o tema. Com uma exceção: quando a abordagem envolvia religiões de matriz africana. Nas entrevistas, professores revelaram que já tiveram problemas de preconceito ao falar do assunto em provas.
E, ao que tudo indica, este não é um fenômeno isolado. Entre 2009 e 2011, Adami, presidente do Iara, foi ouvidor da Secretaria de Promoção de Igualdade Racial do Governo Federal e soube que diretores evangélicos de escolas públicas do Rio estariam se negando a lecionar as chamadas "aulas de macumba". Atitude ilegal, pois as regras para aplicação da lei 10.639 não preveem qualquer elemento que impeça o cumprimento da legislação.
As diretrizes para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no Brasil foram divulgadas em outubro de 2004. Elas foram elaboradas com a ajuda de um grupo de 250 pessoas formado por professores, pais de alunos, integrantes do movimento negro e de outras áreas. O documento determina que a disciplina ofereça aos alunos consciência da diversidade étnica e da sua importância, fortaleça a identidade negra e promova ações contra o racismo. "A ideia da lei é ajudar a desconstruir o mito de que vivemos numa democracia racial", explica Patrícia. Educação artística, literatura e história do Brasil foram identificadas como as principais matérias para cumprir esse objetivo, embora outras também possam colaborar.
Dúvida quanto à qualidade do ensino
Um ponto pouco comentado, contudo, é o fato da lei valer para todos os níveis de ensino, do fundamental ao superior. Isso incluiria desde noções de Egito antigo para alunos de nível básico até aulas de anemia falciforme, pressão alta e outras doenças frequentes na população negra para estudantes de medicina, por exemplo. Entretanto, é difícil saber se a medida está sendo implantada com essa extensão.
O fato é que, desde 2009, colégios particulares com bons níveis de aprovação no vestibular passaram a dar maior atenção ao tema. Naquele ano, o Enem passou a ser a principal forma de acesso às universidades públicas e incorporou questões relacionadas a história e cultura africana e afro-brasileira. Entretanto, se o assunto passou a ser discutido nas aulas de cursinho, o tempo dedicado a ele ainda é pequeno, já que não é grande o número de perguntas no Enem relacionadas ao tema. Na prova de 2015, apenas uma das questões do exame tratava de desigualdade racial.
Apesar das dúvidas quanto à aplicação efetiva da lei 10.639, especialistas concordam que sua aprovação foi um avanço importante. "Antes, não havia sequer a garantia de que essa história seria contada", afirma Pinto. Para ela, o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas vai possibilitar o surgimento de brasileiros com mais consciência social no futuro. Tudo isso vai ao encontro dos objetivos da lei, que visa o reconhecimento e a valorização da identidade dos afro-descendentes, além da garantia de seus direitos como cidadãos.
Contudo, para que esses planos saiam do papel, é necessário que a legislação seja posta em prática da maneira correta, o que ainda não acontece. Penalizar quem não obedece a regra é uma das soluções possíveis apontadas por Adami. "Hoje, as pessoas descumprem e não acontece nada", reclama ele.
Sem a mudança desse cenário, indicadores preocupantes continuarão a existir. De acordo com um levantamentorealizado em 2008 a pedido do Ministério da Educação, 94,2% das pessoas demonstram preconceito étnico-racial no ambiente escolar. Com números como esse, não é estranho que os brancos estudem em média dois anos a mais que os negros no Brasil, conforme está registrado na apresentação das diretrizes para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no Brasil.

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